Falta alguém? | Artigo de Ney Arruda Filho

Minha mãe, Geny Arruda, foi professora de História no ensino fundamental. Foi na década de 1970, tempos difíceis pra se dialogar sobre fatos históricos. Não tanto quanto agora, penso, mas olhando de longe, hoje, vejo como era complicado. Talvez por isso ela gostava de falar nos grandes eventos da primeira metade do século XX, especialmente as grandes guerras. Talvez, como mecanismo de defesa, ela tentasse não olhar pra o entorno. Talvez.

Em casa, sendo mãe, ela nunca deixava a faceta professora de lado. Falávamos de todos os assuntos e, meu pai sendo advogado, temas de tribunal eram frequentes. Daí que juntando história e tribunal, os julgamentos de Nuremberg foram pauta muitas vezes. Recordando, nos idos de 1945, representantes das potências vencedoras da Segunda Guerra se reuniram na cidade de Nuremberg, na Alemanha, para julgar 24 homens, considerados criminosos de guerra nazistas. Primeiro ponto: a lógica da guerra é perversa, porque “quem mata mais” vence e quem “mata menos” perde. Segundo ponto: o que “matou mais” vira herói e julga o que “matou menos” como criminoso de guerra. O processo durou praticamente um ano e terminou com a condenação à morte de 12 dos acusados, 3 à prisão perpétua, 3 a penas que variavam de 10 a 30 anos de prisão, enquanto outros 3 foram absolvidos.

A mãe contava uma história do jornalista David Nasser, que se notabilizou pela publicação de uma série de denúncias contra Filinto Muller, sob o título “Falta Alguém em Nuremberg”. Filinto Muller, pra explicar, foi Chefe da Polícia no Distrito Federal durante o governo de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. Ele também se destacou pela repressão aos opositores de Vargas, especialmente ao líder comunista Luis Carlos Prestes e sua mulher, Olga Benário. Ela foi enviada aos nazistas, quando estava grávida de Anita Leocádia, onde mais tarde morreria no campo de concentração de Bernburg. Durante muito tempo, David Nasser acusou Filinto Muller de crimes contra a humanidade, indicando seu nome para um pretenso novo julgamento em Nuremberg. Apesar de terem sido formadas comissões no Congresso Nacional para apurar as denúncias, Filinto nunca foi punido por seus crimes. Assim, ele pode continuar sua “prestigiosa” carreira como político, vindo a falecer em 1975, em um acidente de avião.

Em novembro passado a minha mãe faleceu, vítima de covid. Agora em março, também perdemos meu sogro. Eles e mais de 300 mil outras vidas que se foram. Para alguns, tudo armação da “grande mídia oportunista”. Para outros tantos, uma dor que não cansa de doer. Nunca vivi uma guerra, mas o momento atual dá uma pequena amostra do que deve ser. Quando tudo isso acabar, talvez seja necessário constituir um tribunal. Nomeados os réus, David Nasser perguntaria: falta alguém?

Ney Arruda Filho

Artigo originalmente publicado no Jornal A Hora

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